Tantas são as filosofias, religiões, teorias e terapias sobre a
espiritualidade e sobre o autoconhecimento que às vezes me pergunto o que é
mesmo esse tal de autoconhecimento. Quem é esse eu que quero descobrir e quem é
esse eu que pergunta isso? Tento elaborar isso sozinha no meu momento de
quietude e de inquietação como se fosse um laboratório da minha convivência,
com o mundo sem as pessoas. Mas o processo para eu entender a resposta exige
outras pessoas, outras situações. E são nessas situações em que vivemos que
existe um conjunto de coisas que precisamos passar para crescer. Todas as
pessoas envolvidas fazem parte desse ritual de crescimento. Não há processo de
autoconhecimento como algo independente da vida de uma pessoa.
Ultimamente tenho tido experiência com crianças e isso me faz
pensar em tantas possibilidades metafóricas. Gosto de ver o tamanho das
mãozinhas e pezinhos e boquinhas. Até mesmo quando eu olho meu retrato branco e
preto de criança, me ponho a pensar: como assim eu cabia todinha nesse
corpinho, com essas mãozinhas e pezinhos? E brincar com elas de “Peekaboo – I see you!” me faz pensar em
tantas coisas...
Pensar que todos nós, as pessoas de todas as idades, que admiramos
ou não, já tivemos algum dia aquele corpinho frágil, dependente e ao mesmo
tempo tão cheio de sementes de vida pura por viver. Tudo por ser construído,
tudo por ser explorado com uma alegria genuína, autêntica. Ali naquele corpinho
está toda potencialidade física, trazendo já com ele todas as tendências emocionais,
sensoriais e espirituais. É incrível.
Muito incrível mesmo.
Só pensar isso já traz um silêncio longo... mas vamos continuar
esse post.
Esse corpinho vai durar alguns meses e outro corpinho aparecerá e
depois outro mais crescido e mais outro.
Eu já mudei de corpos umas tantas vezes nesses quase 60 anos. Já mudei
de conceitos, de ideias, de amores e de dores. Já mudei de desejos, de
vontades. Já mudei de tamanho e de pele e de hormônios. E ainda assim eu
continuo a ser eu mesma. Ops! Mas ao mesmo tempo eu já não sou a mesma de 30
anos atrás, 20 anos atrás, 5 anos... já não sou a mesma de ontem na hora do
café da manhã. E ainda assim continuo
sendo eu mesma. É incrível. Muito incrível.
Quem é esse eu que não muda nunca?
Quando olho agora daqui da sala para minha mãezinha de 94 anos
deitadinha lá na cama, lembro de todas essas formas diferentes que ela já
vivenciou. Mesmo agora na forma frágil e esquecida das coisas e das histórias
que vão se perdendo, ela continua lá sendo ela mesma desde o primeiro dia,
desde sua primeira inspiração se estabelecendo nessa existência.
Da mesma forma que o bebê guarda nele toda a semente que irá
desabrochar, minha mãe guarda nela a beleza da semente manifesta e a semente
que tomará outras formas e ainda assim ela estará lá.
Olho agora a foto de meu pai perto do relógio cujos ponteiros
rodam, rodam, rodam naquele tic-tac quase ensurdecedor. Meu pai não tem mais
todas aquelas formas que eu conheci desde que eu nasci. Mas sabe o quê? Ele
também continua lá existindo naquela nova forma, descobrindo mais uma
possibilidade de existência.
Olho agora para meu corpo e a semente vive em mim também mudando
de formas tão rapidamente que, às vezes, me surpreendo com tantas nuanças de
cores e texturas e flexibilidades e clareza mental e emocional.
A gente vai largando as formas como as borboletas fazem ao largar
os casulos. A gente vai largando nossas crenças, nossas vontades de estar certa, de ser perfeita, nosso
autoritarismo. Vamos largando a nossa vontade de que as coisas sejam como
achamos ser o certo. Vamos largando pessoas, amigos, nosso egoísmo, nossa
tristeza, nossas verdades, nossas opiniões sobre tudo. Largamos nossos livros,
nossos cds, nossas roupas. Vamos largando nossos julgamentos, nossas tolices.
Largamos até mesmo nosso corpo. Nos desfazemos da nossa opinião sobre nós
mesmos, de uma visão de nós mesmos de limitação. E corre a vida nos tic-tacs
dos ponteiros do relógio nos dando todas essas infinitas possibilidade de se
desfazer...
De verdade mesmo existe só um silêncio entre uma forma e outra. E
é nesse silêncio que estou mergulhada nesse momento. Tic-tac, tic-tac. As formas todas saem desse silêncio que
abraça o bebê, que abraça a minha mãe, que abraça o meu pai e que abraça a mim
mesma.
Lembro-me nas minhas brigas com Deus quando eu pedia uma resposta
e não havia resposta alguma. Um dia
lembro-me de sair na sacada de madrugada, angustiada, me sentindo numa
escuridão e lá embaixo na rua os carros não passavam, as árvores balançando na
brisa e eu lá querendo uma resposta que nunca chegava. Decidi então que já que
tudo lá fora era silêncio e que resposta nenhuma vinha, apesar de ter pedido
tanto, então eu também ficaria em silêncio e pronto. E fiquei... Não queria mais saber dessa história de pedir
respostas... Entrei naquele silêncio e
senti algo tão inexplicável... e
entendi, que se existisse mesmo um Deus, ele era esse silêncio. E isso
preenchia e desmanchava todas as formas e esse silêncio era tudo. Tudo a minha
volta era preenchido desse silêncio.
Minha mãe acordou e agora ela olha nossas fotos quando crianças
por intermináveis minutos, fazendo perguntas como se fosse a primeira vez que
estivesse olhando para aquelas formas diferentes de nós mesmos. Olha e
pergunta, olha e pergunta, olha e pergunta...
Tic-tac, tic-tac... E ela, que
sabia de todas nossas histórias da família, adquire uma nova forma nos
ensinando que apesar da forma, apesar do papel que estamos representando,
estamos sempre lá. Esse eu que não morre nunca e que não muda, esse é o “eu”
que estou interessada em conhecer. O autoconhecimento só pode ser desse “eu”
que não muda nunca independente da forma.
A pessoa que era antes precisa crescer no entendimento da outra
nova pessoa que, na verdade, ela sempre foi, mas não sabia. Assim, o
autoconhecimento não é algo progressivo do tipo vou crescendo, vou crescendo
até me tornar uma outra pessoa. Não, pois eu já sou esta pessoa. Se eu me
considero algo que não sou, então o processo de crescimento é o processo de “se
desfazer”. Eu vou me desfazendo da conclusão errada da pessoa que eu acho que
sou para me tornar a pessoa que eu realmente sou.
Peekaboo! I see you!